Eu me senti hipócrita nas primeiras vezes que o pensamento que vou compartilhar agora se formou na minha mente.
Parte de mim já tinha aceitado viver em um episódio de Black Mirror misturado com Matrix, levando a um inegável Exterminador do Futuro, eventualmente.
O advento da inteligência artificial, e o modo que ela passou a tomar o lugar do Google e sites de pesquisa, foi até um passo inofensivo perto do que veio depois.
Ao longo de alguns meses, me deparei com pessoas usando IA como psicólogos, nutricionistas, mestres de RPG, e até como amigos ou parceiro romântico.
Ok, talvez tenha um pouco daquele filme Ela (Her) também.
Deixo claro que entendo que a praticidade e gratuidade da ferramenta, além do amplo campo de conhecimento que ela possa oferecer seja tentador, e que eu sou privilegiada por poder optar de fato por humanos para ocuparem a função na minha vida de psicóloga, nutri, mestre de RPG, amigos e namorado.
Só que na minha cabeça, quem tivesse acesso optaria por humanos, e a vida seguiria.
Veio então o apogeu dos bebês reborns, que até então, eu imaginava que eram apenas bonecos extremamente realistas feitos por artesões talentosos. Jamais imaginei que eles poderiam de fato ocupar um espaço de afeto no coração de uma pessoa (ao menos não muito mais que um bichinho de pelúcia, algum brinquedo de infância, ou objeto de decoração estimado).
Fiquei bastante incrédula (e ainda fico) com o fato de pessoas adultas visitarem profissionais da saúde para atender as necessidades de saúde de um boneco. Acho bizarro contratarem um advogado para dividir a guarda de um objeto. Entendo que possa existir uma necessidade emocional, uma terapia de cura ou um sonho fragilizado por trás, mas isso só me leva a certeza de que essas pessoas (assim como todas as outras) precisam de terapia. E não pelo chat gpt.
Até porquê, eu não sou mãe, e olho com respeito e admiração quem decide criar uma criança. Se eu vejo uma pessoa com um bebê de colo, parte de mim já sente vontade de zelar por elas, oferecer um assento, um lugar na fila, ou respeitar seja lá qual momento físico ou emocional que ela esteja vivenciando.
Me pego pensando até onde um hobby não está substituindo a experiência humana de se conectar e construir laços de afeto valiosos e duradouros.
Um boneco ou uma IA jamais vai oferecer resistência, rejeição, ou necessidade real de responsabilidade emocional. É uma relação onde uma das partes está 100% disponível, moldada às expectativas, desejos e sonhos do seu proprietário. À disposição, pronto para servir a qualquer momento.
Não à toa as relações humanas dão tanto trabalho. É preciso ter empatia pelo outro, se colocar no lugar dele, aceitar sua luz e sua sombra. Não temos posse do outro, e por isso, a convivência deve encontrar um ponto de equilíbrio para que haja uma conexão real, que possa florir.
Será que nessa Era, a vida é tão frustrante que não podemos mais despender um momento para se conectar com alguém real, e aceitar que frustrações podem surgir, e que relacionamentos duradouros são os lapidados para que diferenças sejam características, e não problemas?
Agora vem a parte da hipocrisia. Me perguntei: “Qual a diferença entre um relacionamento com uma IA ou bebê reborn, e a minha com um personagem de um livro? Sou conectada emocionalmente com vários deles, me sentindo pertencente a um mundo fantástico, ligada aos seus sonhos e seus valores.”
Meu amigo, essa reflexão durou o dia inteiro, até eu decidir escrever esse texto e tentar clarear as ideias enquanto confundo a sua.
Será que eu estava sendo arrogante e precipitada no meu pensamento? Afinal, eu também sou conectada com narrativas ilusórias, com o único respaldo de que esse hábito é um traço da humanidade com milhares de anos de tradição.
Mas já disseram também séculos atrás que os livros eram um objeto de alienação, distanciando a pessoa do mundo real e das relações verdadeiras.
Será então que minha loucura era a mesma, porém com um viés acadêmico comprovado por quem dita a história?
Olha, foram horas difíceis dentro da minha cabeça.
Até eu encontrar um pingo de paz ao pensar que os livros que leio, foram feitos por humanos. Que se me conecto com personagens, indiretamente estou conectada por uma poderosa cadeia geracional de histórias que buscam desvendar as dores e delícias de existir e habitar o universo.
Sim, os personagens que amo não são reais. Mas o cerne de suas jornadas, são. O sonho de quem estava atrás de cada letra que me encantou, tinha um coração batendo assim como o meu.
Toda a arte que consumo foi feita por seres humanos imperfeitos, com dúvidas, medos e sombras, e ler cada livro que já li exigiu horas de catarse e empatia para construir esse sentimento de amor e pertencimento entre um leitor e uma obra – uma das relações mais íntimas que se pode existir.
No final, não sinto que a obra me pertence, mas sinto que eu pertenço a ela. Acho que é isso que difere a forma que eu enxergo as minhas relações: não busco algo perfeitamente sob medida, busco algo real.
Não quero alguém para me servir. Quero me relacionar com pessoas de carne, osso e sonhos, cuja existência será um relâmpago no universo, que tenha plena ciência disso e por tal motivo, faça cada segundo ser valioso.
Não me interessa interagir com quem não vê que a vida é um milagre.
O que pensa sobre isso? Espero tê-lo confundido.
Creio que nós, seres humanos, somos narrativa. Não é algo de que gostamos ou usamos, simplesmente, somos isso, está no centro do que significa ser humano. Se somos sociais é porque enquanto narrativa interagimos com outras, estabelecemos uma relação com elas na medida em que elas se estendem dentro da nossa própria, quer dizer, um livro morre na sua contracapa, alguém é a história que acaba no seu último suspiro. A ruptura com o mundo objetivo acontece quando atribuímos status de real a uma narrativa que é nossa e projetamos no outro: fica mais claro nos bebês reborn, um pouco menos claro nas relações com IAs. O sujeito que se casou um com uma IA no Japão teve seu relacionamento terminado pela descontinuação da sua esposa. Nos perdermos no absurdo e o naturalizamos, nada mais nos choca, porque o outro enquanto coisa real, ser real, não existe mais, isso é, eu não enxergo no outro algo além de uma curtida, de uma satisfação do meu desejo pessoal - o dividir e conquistar elevado ao seu último grau.
E vamos nos arrastando com o grilhão da consciência nos pés enquanto outros se embebedam da liberdade ignorante. já não sei mais se Idiocracia é uma profecia ou um documentário (filme já não creio que seja).